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Agamben pós-moderno?



Ao leitor de Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I, é importante chamar a atenção para esta obra que tem exercido profunda influência sobre pesquisadoras e pesquisadores brasileiros. Ela não se reduz à oposição que intitula o primeiro livro da série: o poder soberano e a matável vida nua.

Entre 1995 e 2015, Agamben publicou uma série de pesquisas sob o título Homo Sacer. Esta é uma figura do direito romano que ele usa como paradigma, isto é, como um modo de exibição de um problema deste tempo. No entanto, o que talvez passe desapercebido é o significado e a extensão dessa dimensão evocada pela palavra latina “sacer”. Sacro ou sagrado, no pensamento de Agamben, está referido à religião, que não é aquela dimensão que une os homens ao sagrado (religare), mas aquela que separa, devido à atenção que imprime na tarefa de reler (relegere) os textos sagrados. Por isso, em seu pensamento, a palavra “religião” não nomeia apenas o aparato teológico construído por séculos, mas, principalmente, a interdição ao uso distraído do que é considerado sagrado. As coisas tidas como sacras são separadas do uso, indisponíveis a ele.

É nesse sentido que Agamben escreveu o texto “Il capitalismo comme regilione” [O capitalismo como religião]. A tese segundo a qual o capitalismo é a religião do nosso tempo é retirada de um texto homônimo e fragmentário de Walter Benjamin. Diferente de Max Weber, que sustenta a ética protestante como condição de possibilidade para que o capitalismo pudesse surgir, Benjamin afirma que o capitalismo funciona ao modo religioso. Partindo dessa afirmação e dos apontamentos presentes nesse texto fragmentário, Agamben tece agudas críticas à religião capitalista, que só crê no dinheiro


Se Agamben escreve que a ciência, assim como o capitalismo, é a religião do nosso tempo, não é por herança do pós-modernismo. Em seu livro sobre o método, Signatura rerum (publicado pela Boitempo), Agamben faz referência a A estrutura das Revoluções Científicas de Thomas Kuhn, que procurou pensar as transformações científicas não como uma evolução linear, contínua e progressiva, mas como fruto de uma descontinuidade, de uma mudança de paradigma. Não à toa, o filósofo italiano recorre a esse trabalho tão importante no campo da história e da filosofia da ciência para se referir a um dos seus conceitos metodológicos mais importantes, o paradigma.


À adesão acrítica às formulações científicas é importante contrapor: foi a ciência que afirmou que as mulheres eram histéricas, que os negros eram degenerados e inclinados à criminalidade, que homossexualidade era doença (e isso só faz trinta anos). Ou ainda, o que é mais assombroso e desconcertante: grande parte da tecnologia médica do século XX resulta dos experimentos dos campos de concentração. Nesse sentido, tal como todos os outros discursos sobre o mundo, a ciência, apesar dos seus métodos, teorias e práticas – ou justamente por eles –, talvez não possa ver o ponto cego do seu tempo nem as implicações éticas de suas postulações. É possível que caiba à filosofia esse endereçamento. Ou, como escreve Agamben: “Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente”.


Se a religião consiste na separação, qual o significado de afirmar que a ciência é a religião do nosso tempo? Um conceito fundamental para as ciências médicas e biológicas, a vida, não é definido enquanto tal, mas é apenas fruto da divisão – a separação – de diferentes funcionalidades orgânicas (é isso, por exemplo, que está no cerne da discussão sobre que funções orgânicas permitem definir o que é vivo ou não). A divisão que separa e decide o que é vivo ou não, governa. Tal como a religião separa o sagrado (sacer) do profano para governar o comportamento que os homens devem ter diante das coisas sacras, a ciência governa os corpos separando o vivo do não vivo (no caso do aborto, nas discussões sobre a vida do feto, isso fica explícito em relação ao corpo das mulheres).


Aonde a admissão dessa tese, segundo a qual a separação religiosa governa secretamente as nossas sociedades, poderia nos levar? Ou melhor, qual a resposta possível à vida nua do homo sacer? Agamben evoca a forma-de-vida, escrita com hífen. O sintagma “forma-de-vida” indica uma vida inseparável da sua forma, isto é, uma vida em que não se pode isolar algo como a vida nua. Com ele, Agamben busca ressaltar que a vida nunca se reduz inteiramente a fatos, mas que ela é sempre sobretudo possibilidades. É isso que está em jogo no seu “Elogio da profanação”, texto no qual profanar significa restituir ao uso aquilo que foi separado. Restituição essa que não se dá sob a forma de um retorno, mas de um novo uso, ainda por inventar. Não é por outro motivo que o uso, esse uso profano, que não se confunde com a utilidade, é uma categoria central para a filosofia política de Giorgio Agamben.


A partir disso, talvez, pudéssemos evocar aqui um homo profanum a quem corresponderia uma forma-de-vida, na qual as suas capacidades e as suas possibilidades não se reduzem à luminosidade sacralizada do progresso. Tal como Walter Benjamin na tese IX do texto “Sobre o conceito de história”, Agamben vê o progresso como aquela tempestade que arrasta o Anjo da história para o futuro, deixando diante dos seus olhos, voltados para o passado, escombros. Mais explicitamente: a modernidade sustentou a crença na ciência e apostou no progresso, recalcando os escombros que a sua violência fez aparecer.

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