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A filosofia pode manter vivas as tensões?


Ler o tempo atual com a complexidade que lhe é devida, ser capaz de manter um exercício de pensamento como crítica (histórica, filosófica e política), reconhecer as disputas discursivas sobre um acontecimento quando se está lançado no olho do furacão, tem sido os esforços de muitos pensadores contemporâneos. Judith Buttler, Paul Preciado, Byung-Chul Han, Paul Ricouer, Giorgio Agamben, entre muitos outros, todos intelectuais reconhecidos por lidarem teoricamente com atualidades políticas, não têm se furtado a esse exercício também agora, quando é inegável que passamos por uma grande crise sanitária de dimensões globais. No campo do pensamento político brasileiro, a natureza da questão que cada autor coloca e o teor de cada artigo publicado tem ocupado o debate público que se estabeleceu com uma série expressiva de publicações, traduções dos textos desses pensadores estrangeiros, artigos etc, produzindo um debate que alcança redes sociais, como Twitter e Facebook.

Inegável também é que o cenário conjectural brasileiro se apresenta como catastrófico. Soma-se à crise de saúde pública uma instabilidade política que favorece o advento de medidas autoritárias, inconstitucionais e irracionalistas. Em nosso país, a gestão da crise submete uma população de cerca de 210 milhões de habitantes a discursos e ações de absoluto desprezo pelas condições de existência dos brasileiros e brasileiras. A precariedade não se restringe ao esgotamento da capacidade dos sistemas de saúde, faltam subsídios para triagem, testagem e tratamento da doença covid-19 e a situação se agrava pela falta de medidas eficientes de distribuição de renda, pela seletiva administração das medidas de distanciamento social e das condições de vida e habitação nas cidades.

No Rio de Janeiro, cidade que atualmente é um epicentro de disseminação do vírus, grande parte da população mantém suas atividades profissionais, necessitam do transporte público e não tem condições materiais mínimas para estar em quarentena. Para a população pobre da cidade carioca, como de muitas cidades brasileiras, o coronavírus é apenas mais uma evidência de que suas vidas estão radicalmente expostas ao risco de morte. No dia 15 de maio de 2020, quando a cidade contabilizava 60 dias de comércio e escolas fechadas e severas restrições de circulação e quando os números oficiais de mortos por covid-19 apontavam para 824 mortes nas últimas 24 horas1, foi empreendida uma operação policial na região do Complexo do Alemão. A morte de 12 pessoas está sob investigação. É provável que seja justamente o estágio de horror ao qual estamos submetidos que mobiliza e confere intensidade ao debate que temos travado.

Dentre as leituras sobre a presente conjuntura feitas por filósofos, as opiniões de Giorgio Agamben são as que tiveram maior repercussão. Uma proposta de reflexão que visa inserir no contexto de sua obra as últimas declarações do autor italiano sobre as medidas de exceção tomadas diante da pandemia foi realizada por Carla Rodrigues, Isabela Pinho, Juliana Moraes, Caio Paz e por mim, em “Agamben sendo Agamben: por que não?”, artigo publicado no blog da Editora Boitempo. Aqui continuo as reflexões iniciadas nesse texto coletivo porque considero relevante, além de pensar as declarações de Agamben à luz de sua própria obra, tensioná-las com alguns aspectos do particular caso brasileiro.

Agamben publicou em sua coluna “Una voce” no site da editora italiana Quodlibet, pela qual vários de seus livros foram lançados, uma série de pequenos artigos sobre a gestão italiana da pandemia. O primeiro desses textos se chama “A invenção de uma epidemia”, de 26 de fevereiro de 2020, no qual ele questiona as medidas de exceção tomadas pelo governo italiano em razão de emergência. Até o dia 11 de maio Agamben escreveu 12 textos sobre o que tem sido chamado de “crise do novo Corona vírus”. Em muitos desses escritos o filósofo reitera a sua leitura crítica sobre as medidas excepcionais, aquelas medidas que a priori não são constitucionais, mas que se legitimam em muitas constituições democráticas pelo dispositivo jurídico da declaração de um “estado de emergência”. Agamben insiste que a atual conjuntura está deixando ainda mais explícitos os pressupostos que sustentam as democracias capitalistas: a decisão sobre a exceção e a consequente produção de cidadãos de segunda categoria. Com isso, o filósofo convida seus leitores a identificarem a intimidade entre os pressupostos que legitimam tanto os discursos que defendem toda e qualquer medida de exceção tomada em nome da vida, quanto aqueles outros, que defendem a morte de seus cidadãos em favor da vida da economia.

Os textos recentes de Agamben, além de tematizarem as medidas de exceção, dirigem-se também aos discursos de defesa da possibilidade de manutenção da vida das pessoas em condição de isolamento social. No texto de 20 de abril, intitulado “Fase 2”, ele insiste na impossibilidade de continuar a chamar de vida política a condição que o distanciamento social coloca e argumenta apresentando dados sobre o suicídio de pessoas na casa dos 70 anos, na Itália. Casos de pessoas que, mesmo tendo suas vidas “protegidas” por um Estado que acredita e emprega a tese de que o isolamento social é a única maneira de combater o contágio em massa de sua população, indicam, pelo suicídio, que não é suportável para elas viver sem as relações em comunidade.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, é absolutamente incontornável a necessidade de imposição do isolamento social para conter o avanço do número de casos da doença, enquanto uma vacina não for desenvolvida. No Brasil, essa não é a posição do presidente da república, como está explícito em suas declarações aos jornalistas e na demissão de dois ministros da saúde, em menos de um mês, por não estarem “alinhados” com o seu posicionamento. Aqui também uma pessoa de 85 anos de idade, o ator Flavio Migliaccio, suicidou-se. Ele escreveu em carta que “jogou fora” seus anos de idade dedicando-os a um país “com esse tipo de gente”. Certamente, como fica claro na mensagem deixada por Migliaccio, o ponto de insuportabilidade da vida no Brasil passa pela catástrofe particular que o Estado brasileiro atravessa.

Enquanto na Itália, Agamben demonstra como são ilegítimas, do ponto de vista do direito, as medidas de flexibilizar o isolamento social, mantendo-as para alguns grupos específicos como os idosos, como também o são as limitações quanto às distâncias a serem mantidas entre as pessoas nas ruas e em espaços fechados. Para o filósofo, essa conduta significa a exclusão de qualquer possibilidade de uma atividade política real, ele afirma: “é necessário demonstrar sem reservas o próprio dissenso sobre o modelo de sociedade fundado sobre o distanciamento social e sobre o controle ilimitado que se deseja impor”2.

Em “Novas Reflexões”, texto de 22 de abril de 2020, Agamben apresenta trechos de uma entrevista publicada por um jornal italiano na qual ele também comenta o atual cenário, as medidas governamentais tomadas em nome da preservação da saúde pública e da vida biológica - nos textos sobre o vírus, Agamben mobiliza indistintamente os conceitos de vida nua e vida biológica, aspectos que ao longo de Homo Sacer I: poder soberano e vida nua ele procurou diferenciar. Ele diz que na Itália a população está acostumada com um tipo de governamentabilidade feita por decretos, com a qual também estamos familiarizados, mas mostra a radicalidade de um sistema de governo que alia medidas de exceção com o controle de cada cidadão através das câmeras de vídeo dos telefones celulares. Agamben aponta e denuncia um horizonte político ainda mais fragilizado do que aquele no qual vivíamos até então. O radical controle dos corpos dos sujeitos políticos, os cidadãos, nas democracias contemporâneas parece estar chegando a sua forma máxima, ele afirma. Nessa entrevista e no texto “Distanciamento social”, publicado em 6 de abril de 2020, Agamben apresenta a fragilidade de uma comunidade política fundada sobre o distanciamento social, uma sociedade desse tipo seria: “uma massa rarefeita e baseada em uma proibição, mas, por essa mesma razão, particularmente compacta e passiva”.

Nesse sentido, a comunicação virtual e a conectividade possibilitadas pelas tecnologias digitais não se apresentam como uma alternativa ao espaço público real, que se estabelece nos encontros entre as pessoas, com a vivência coletiva e com o trânsito entre os diferentes espaços da cidade. Na perspectiva de continuidade da vida pública, mesmo sob um regime de isolamento social, a política pode ser feita virtualmente, os encontros entre amigos podem ser feitos virtualmente, a educação de crianças e jovens pode ser feita virtualmente, precisamente porque a “situação de emergência” justifica que essa vida espectral se apresente agora como a única vida possível. A casa, aquele âmbito doméstico que os gregos distinguiam com clareza do espaço público através da palavra oikos, confunde-se integralmente com o espaço próprio da política, a polis, exibindo uma radical redução da vida ao âmbito de uma oikonomia. As razões econômicas justificam, assim, tanto discursos como do presidente brasileiro, que pretende preservar a vida econômica do país, desde uma perspectiva liberal, como aqueles outros, entusiastas do isolamento social de parte da população, mas que também visam a preservação da economia, transpondo para as casas dos cidadãos suas atividades profissionais e suas relações sociais.

Agamben faz críticas às medidas de isolamento dos corpos porque compreende que conexão virtual não garante uma vida política, não assegura o fim das desigualdades e das formas de exclusão de algumas vidas humanas, mas as potencializa. A vida entregue aos dispositivos tecnológicos de comunicação à distância é apenas garantia da manutenção da vida como mera vida, da vida no campo. Talvez a incompreensibilidade que tem sido latente em relação ao posicionamento de Agamben se dê porque é muito duro admitir que, diante do real, da possibilidade da morte, acatamos como possível a captura de todas as dimensões da vida humana por uma lógica de pura manutenção de sua existência, exatamente como temos experienciado, de maneira radical, no tempo de agora. Talvez porque mesmo uma vida equipada com dispositivos, mesmo a vida burguesa daqueles que puderam parar de produzir, daqueles que puderam continuar a produzir de suas casas, é uma mera vida capturada.

O ponto fundamental da filosofia agambeniana se torna mesmo evidente no tempo de agora, em que a fronteira entre incluídos e excluídos se tornou tão mais explícita, quando isolados e em quarentena estão apenas os que têm casas, casas que se mantém limpas com o não interrompido trabalho das diaristas e empregadas domésticas. Casas que se transformam em restaurantes pelo trabalho dos entregadores(as) e das(os) cozinheiras(os) para os quais não há qualquer perspectiva de isolamento, para os quais não se pode falar de quarentena, aqueles que, seja pelo discurso bolsonarista, seja pelos defensores do isolamento social, continuam a se reunir lá fora. O ponto fundamental que a filosofia de Agamben lança luz é aquele através do qual as democracias capitalistas espetaculares operam sua radical eliminação dos, há muito, desde antes, excluídos e mantém apenas fastasmagoricamente vivos aqueles que pretendem incluir. A filosofia de Agamben não apaga a diferença entre eles, mas exibe o ponto em que um e outro se indetermina para os ler paradigmaticamente.

O paradigma opera uma passagem do estatuto que imagens como o campo de concentração, o muçulmano e o homo sacer, possuem no estado de exceção e os deslocam para outro lugar. Como casos exemplares, essas figuras são isoladas da lógica que as constitui e em suas singularidades criam, com o deslocamento da lógica, uma nova forma de se relacionar com ela, poderíamos dizer também, mostrando-se ao lado do ordenamento jurídico do qual pertencem, essas figuras exemplares formam um novo conjunto e uma nova inteligibilidade do próprio ordenamento. Esta é a primeira consequência política de um tipo de epistemologia que elege o paradigma como método. Desde a perspectiva do isolamento social, a casa é o novo campo de experimento biopolítico. Primeiro porque a ela se reduz todas as esferas da vida dos cidadãos e segundo porque evidencia a distinção, dentro de um mesmo povo, de cidadãos de primeira e de segunda categoria. No Brasil, a máxima “se puder fique em casa” deixa as claras a exclusão de uma enorme classe de pessoas.

Levar a filosofia a reconhecer através de uma nova forma de inteligibilidade as figuras que ela exclui faz com que seja possível pensar ainda em formas de vida comunitárias, pensar em uma comunidade em que as redes e as casas não serão o novo espaço público, mas apenas uma das dimensões das singularidades que as usam. Talvez a interpretação que Agamben faz do presente imediato não seja verdadeira em si mesma, mas é importante para manter as tensões sobre os discursos hegemônicos. Mesmo em um presente de alto risco, pensar uma comunidade em que o campo de concentração não será mais o paradigma biopolítico que mantém meramente vivos (ou quase mortos) os nossos corpos continua sendo uma emergência. Uma crise sanitária precisa de médicos, de cientistas, mas também de filósofos.

2AGAMBEN, Giorgio. “Fase 2”. No original:“Occorre manifestare senza riserve il proprio dissenso sul modello di società fondato sul distanziamento sociale e sul controllo illimitato che si vuole imporre”. Tradução minha. Texto de 20 de abril. Disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-fase-2

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